Um grupo de
especialistas vai estudar a viabilidade de o Brasil desenvolver seu próprio
sistema de geolocalização por satélite, um empreendimento de altíssima
complexidade e custo. Formado por representantes de ministérios, da
Aeronáutica, de agências e institutos federais e da Associação das Indústrias
Aeroespaciais do Brasil, o grupo técnico deve diagnosticar as eventuais
consequências do país depender de sistemas de posicionamento, navegação e tempo
controlados por outras nações.
O grupo foi criado no
início deste mês, por meio da Resolução nº 33, do Comitê de Desenvolvimento do
Programa Espacial Brasileiro. Assinada pelo ministro do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI) da Presidência da República, Marcos Antonio Amaro dos
Santos, a resolução estabelece um prazo de 180 dias, contados a partir de 14 de
julho, para que o grupo entregue ao ministro um relatório com suas conclusões e
sugestões.
“O grupo ainda está se
organizando”, explicou nesta segunda-feira (21), em entrevista à Agência
Brasil, Rodrigo Leonardi, diretor de Gestão de Portfólio da Agência Espacial
Brasileira (AEB), um dos 14 órgãos e entidades que vão compor o grupo, que
poderá convidar representantes de outras instituições aptos a contribuir com os
objetivos estratégicos do grupo.
“Vamos procurar
entender os gargalos, as dificuldades, os prós e contras de desenvolvermos um
sistema destes”, acrescentou Leonardi, destacando a importância dos atuais
sistemas de navegação por satélite – dentre os quais, o mais conhecido é o
estadunidense GPS (do inglês, Sistema de Posicionamento Global), operado pela
Força Espacial dos Estados Unidos.
“No Brasil,
historicamente, priorizamos o debate acerca de outros aspectos espaciais, como
a necessidade de termos satélites para monitoramento territorial. Agora, vamos
discutir se queremos ou não ter nosso próprio sistema de navegação; o
investimento necessário para fazê-lo e, se for o caso, a necessidade nacional
de ter um sistema global ou um sistema regional, capaz de cobrir todo nosso
território. Qualquer que seja o caso, se o país concluir que deve fazer isso, o
patamar de investimentos terá que ser muitas vezes maior que o atualmente
investido no programa espacial brasileiro”, concluiu Leonardi, admitindo a
complexidade da empreitada, que exige capacidade tecnológica para projetar,
fabricar e lançar satélites capazes de transmitir, do espaço para a terra,
sinais precisos.
O grupo técnico foi
criado uma semana antes do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
anunciar que, a partir de 1º de agosto, os produtos brasileiros pagarão uma
tarifa de 50% para ingressar em território estadunidense. E duas semanas antes
de as redes sociais serem tomadas pelo debate sobre a possibilidade de os
Estados Unidos, em caso de uma guerra comercial, desligarem ou restringirem o
sinal de seu sistema, o GPS (do inglês, Sistema de Posicionamento Global), para
o Brasil.
“Este é um típico caso
de ruído surgido nas mídias sociais, capaz de gerar ansiedade. E uma
coincidência, porque já vínhamos discutindo o tema há tempos, de maneira que a
criação do grupo não teve nenhuma relação com o que aconteceu depois”, afirmou
Leonardi. “Primeiro, porque não houve nenhum comunicado, de nenhuma autoridade
norte-americana, sobre a remota possibilidade dos EUA restringirem o uso do GPS
no Brasil. Depois porque, mesmo que isso acontecesse – o que seria uma situação
muito drástica e improvável – há alternativas ao GPS”, assegurou o diretor da
Agência Espacial Brasileira.
Segundo Leonardi, a
maioria das pessoas erra ao usar a sigla GPS como sinônimo de GNSS, do inglês
Sistema Global de Navegação por Satélite, termo correto para se referir a
qualquer conjunto (ou constelação) de satélites usado para fornecer serviços de
posicionamento, navegação e temporização global. “O GPS é o sistema de
propriedade dos EUA, mas há outros, globais, como o Glonass [russo]; o Galileo
[União Europeia] e o BeiDou [ou BDS], da China. Estes têm cobertura global e
podem ser utilizados, inclusive, no e pelo Brasil. E há também algumas nações
que possuem sistemas regionais, como a Índia [NavlC] e o Japão [Qzss]”, apontou
Leonardi.
“Com isso em mente, é
lógico cogitar que, em tese, os EUA poderiam degradar ou até mesmo restringir o
sinal de seu GPS para determinadas regiões, mas esta seria uma medida tão
drástica que, a meu ver, só se justificaria se a segurança nacional dos EUA
estivesse sendo ameaçada”, ponderou o diretor da AEB.
“Primeiro porque as
empresas estadunidenses que operam no Brasil, como aplicativos de transporte e
de entrega, seriam afetadas. Outras nações também seriam prejudicadas, já que
não há como limitar o sinal para todo um território sem afetar países
fronteiriços. Fora que isso poderia causar acidentes, por exemplo, na aviação
civil, custando vidas, inclusive as de norte-americanos. Para não falar das
repercussões comerciais, já que outros países se perguntariam se deveriam
continuar confiando no sistema norte-americano ou migrar para outros”, apontou
Leonardi.
Professor da
Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Laboratório de Automação e
Robótica (Lara), Geovany Araújo Borges, concorda com a avaliação de que,
tecnicamente, os EUA poderiam interromper o sinal do GPS ou mesmo tornar o
sistema menos eficaz para uma determinada região, mas não crê que isso venha a
ocorrer.
“Se fizessem isso sem
aviso prévio, os norte-americanos assumiriam o risco de contrariar seus
próprios interesses em território brasileiro”, endossou Borges, acrescentando
que boa parte dos sistemas e equipamentos eletrônicos modernos são capazes de
receber o sinal de mais de um sistema de geolocalização. De maneira geral, os
sinais enviados pelos satélites que integram os diferentes sistemas em operação
são captados por receptores embutidos em veículos, aeronaves, espaçonaves,
navios, munições guiadas de precisão, aplicativos e telefones celulares, além
de equipamentos de monitoramento de uso industrial, civil e militar.
“A maioria dos
aparelhos celulares, por exemplo, já é multiconstelação, ou seja, é capaz de
receber, automaticamente, o sinal de diferentes sistemas. De forma que, em
termos de localização, nossos celulares seguiriam funcionando normalmente se
deixássemos de receber o sinal do GPS. A mesma lógica vale para muitos outros
sistemas [dependente de serviços de posicionamento, navegação e temporização
global]: se o sistema de sincronização for redundante, o impacto será
limitado”, disse Borges, defendendo a importância de um país dispor de
tecnologias próprias neste setor.
Ele lembra que,
independentemente das intenções norte-americanas ou de haver alternativas ao
GPS, hoje o Brasil depende de outras nações neste que é um campo estratégico. “Várias
áreas perdem com isso. Não só porque um país independente tem que ter um setor
de defesa aeroespacial forte, como porque o desenvolvimento de tecnologias
aeroespaciais beneficia outros segmentos, como, por exemplo, a medicina, a
indústria e a agropecuária”, comentou o professor, assegurando que o Brasil
dispõe de mão de obra qualificada e capacidade de desenvolver, a longo prazo,
seu próprio sistema.
“Nosso problema não é
RH [recursos humanos]. É dinheiro. Temos pessoal capacitado. A questão é se
temos condições de bancar um projeto desta envergadura. Principalmente porque,
qualquer coisa neste sentido que comecemos hoje, demorará a vingar. Até mesmo
porque alguns países não aceitarão exportar certos componentes essenciais.
Então, teremos que, paralelamente, desenvolver nossa indústria de
microeletrônica, investir mais em educação básica e assegurar que este projeto
seja uma política de Estado. Neste sentido, ainda que tardia, é positiva a
criação de um grupo de especialistas para debater o tema”, finalizou Borges.
Fonte: Agência Brasil