O Telegram conta com representante no Brasil há
sete anos para atuar em assunto de seu interesse junto ao órgão do governo
federal encarregado do registro de marcas no país, ao mesmo tempo em que ignora
chamados da Justiça brasileira e notificações ligadas às eleições. Os poderes
de representação foram conferidos pelo empresário russo Palev Durov, um dos
fundadores e CEO da empresa, ao escritório Araripe & Associados, com sede
no Rio de Janeiro.
Enquanto isso, a plataforma tem escapado de ordens e pedidos de autoridades brasileiras, inclusive do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e do STF (Supremo Tribunal Federal), que fazem tentativas de contato sobre demandas envolvendo publicações na rede social.
O Telegram é visto como uma das principais preocupações para as eleições de 2022 devido à falta de controles na disseminação de fake news e se tornou também alvo de discussão no Congresso e no TSE para possíveis restrições em seu funcionamento no Brasil.
A Folha teve acesso a procurações assinadas por Durov e que compõem o processo do registro da marca do aplicativo de mensagens instantâneas em tramitação no INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). A primeira delas é datada de fevereiro de 2015.
De acordo com os documentos, os advogados do escritório foram nomeados para “representar o outorgante [Telegram] perante as autoridades administrativas ou judiciais do Brasil” com o objetivo de “obter e defender direitos relativos a propriedade industrial”. Eles estão autorizados também a “receber citações judiciais relativas à matéria de propriedade industrial”.
Amplamente usada pela militância bolsonarista, a ferramenta é hoje um dos desafios das autoridades brasileiras engajadas no combate à desinformação eleitoral. Até o momento, elas não tiveram sucesso em estabelecer um contato com os responsáveis pela plataforma.
O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, enviou ofício a Durov, mas não houve, segundo a corte, “registro de resposta ou confirmação de recebimento até o momento”. O Ministério Público Federal também não obteve retorno.
O Araripe & Associados deu entrada no processo junto ao INPI em 2015. O registro foi aprovado em julho de 2017, com validade inicial de dez anos. A medida garante que nenhuma outra empresa use a marca Telegram no Brasil, dando a exclusividade à companhia estrangeira. À Folha o escritório se limitou a confirmar a existência de contrato vigente para atuar em nome do aplicativo “exclusivamente” em assunto de propriedade intelectual.
Afirmou que, por razões legais, não poderia divulgar nomes e outros detalhes sobre a relação comercial mantida com a empresa com sede em Dubai, nos Emirados Árabes. A banca de advocacia disse ainda que foi escolhida por intermédio de um escritório estrangeiro que atende o Telegram, mas que também não poderia indicar qual.
Após a concessão do registro pelo INPI em 2017, pelo menos quatro outros pedidos da plataforma foram protocolados junto ao órgão, seja para alterar informação sobre a sede, seja para transferir a titularidade da marca entre empresas pertencentes ao mesmo grupo.
O registro inicial foi feito em nome do
Telegram Messenger LLP. Houve a transferência para o Telegram Systems LLP e,
atualmente, o cessionário é o Telegram FZ-LLC, com sede em Dubai. Segundo o
processo, foram realizados alguns pagamentos relativos ao registro e manutenção
da marca que somam, em valores atuais, pouco mais de R$ 2.400.
Conforme mostrou a Folha, a empresa ignora há cerca de seis meses uma determinação do STF para retirar do ar publicação de Jair Bolsonaro (PL) com informações falsas sobre as urnas eletrônicas. Em agosto passado, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, ordenou que uma publicação do mandatário sobre a suposta vulnerabilidade das urnas fosse apagada do aplicativo. O texto, porém, segue no ar até hoje.
Outras redes sociais, como o Twitter e o Instagram, cumpriram a decisão do magistrado e derrubaram o conteúdo. O Telegram nem sequer se manifestou no inquérito. Bolsonaro lidera com vantagem o uso da plataforma como ferramenta de comunicação direta com seus apoiadores. Tem hoje mais de 1 milhão de seguidores inscritos.
À frente nas pesquisas de intenções de voto para as eleições, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou um canal na rede em junho de 2021 e tem pouco mais de 47 mil seguidores. Nas redes sociais, Bolsonaro tem convocado apoiadores a se inscreverem em seu canal no serviço de comunicação, onde divulga ações do governo diariamente. Recentemente, ele chamou de covardia o cerco à plataforma e disse que o governo está “tratando” do assunto.
A Folha perguntou ao Palácio do Planalto o que estaria em discussão no Executivo e que poderia estar relacionado ao funcionamento do aplicativo. Não houve resposta. Com pouca moderação e uma estrutura propícia à viralização, a plataforma é uma das preocupações do TSE para as eleições de 2022. A ferramenta conta com grupos de 200 mil integrantes e canais com número ilimitado, caso de Bolsonaro.
Ministros temem que a plataforma seja o principal canal para o presidente e seus aliados disseminarem declarações falsas sobre supostas fraudes nas eleições. A preocupação aumenta em razão da falta de resposta ao ofício enviado por Barroso à direção do Telegram com o objetivo de formalizar uma cooperação para o combate às fake news.
A carta foi enviada a dois endereços eletrônicos de Durov e para a sede do aplicativo nos Emirados Árabes, no mesmo local indicado no processo da marca junto ao INPI.
O TSE criou o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação e, na semana passada, foram firmados memorandos de entendimento com as plataformas Twitter, TikTok, Facebook, WhatsApp, Google, Instagram, YouTube e Kwai. O Telegram deveria estar inserido nesse contexto.
Os acordos contemplam ações e projetos que serão desenvolvidos em conjunto pelo tribunal com cada empresa. Em comunicado, o tribunal informou que todas elas se comprometem a priorizar informações oficiais como forma de mitigar o impacto nocivo da desinformação. Barroso entende que os serviços de comunicação com papel relevante no pleito do segundo semestre não podem operar no país sem representação jurídica adequada, responsável pelo cumprimento da legislação nacional e das decisões judiciais.
A dificuldade de alcançar a plataforma está inserida em um debate sobre os desafios de tornar legislações nacionais efetivas em um mercado de serviços na internet cada vez mais globalizado. Em entrevista à Folha, o ministro reforçou a necessidade de que as plataformas tenham representante no Brasil para que possam se adequar às leis brasileiras e cumprir ordens judiciais.
“Tenho dito que o ideal é que o Congresso tome essa deliberação, mas, se o Congresso não tomar essa deliberação, a matéria provavelmente vai chegar, se não ao TSE, ao menos no Supremo”, afirmou. Uma medida mais drástica, como o banimento, ainda não é consensual nos dois tribunais.
O Congresso discute um projeto de lei —conhecido como PL das Fake News— com o objetivo de fixar as balizas para o funcionamento de empresas de serviço de mensagens e redes sociais. A proposta tem pontos de muita polêmica, e Bolsonaro já antecipou que pretende vetar trechos.
Na Alemanha, com cerca de 8 milhões de usuários, o Telegram vinha igualmente se recusando a conversar com autoridades que atuam no enfrentamento a ações de grupos extremistas. A plataforma mudou recentemente de postura com a sinalização de que medidas mais drásticas poderiam ser adotadas, incluindo o seu banimento do país. Bloqueou mais de 60 canais usados por radicais em atendimento a um pedido da polícia alemã.
P. Livre
Nenhum comentário:
Postar um comentário