O tratamento dos transtornos mentais com
abordagem dos aspectos da religiosidade e espiritualidade (R/E) passou pela
pandemia de covid-19 e terá continuidade, afirmam especialistas que
participaram do 39º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado nesta
semana, em Fortaleza, pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Trabalhos científicos divulgados ao longo das
últimas décadas, entre os quais o estudo Position Statement, do psiquiatra
brasileiro Alexander Moreira-Almeida, publicado em 2016 pela Associação Mundial
de Psiquiatria (WPA) na revista World Psychiatry, destacam a importância da
abordagem e integração da R/E na avaliação, diagnóstico e tratamento de doenças
mentais. A WPA reforçou, na ocasião, a relevância das pesquisas sobre o tema e
a consideração da religiosidade dos profissionais da saúde mental envolvidos
nos atendimentos.
Ao participar do congresso, Moreira-Almeida
disse à Agência Brasil que o posicionamento da WPA já foi um reconhecimento das
evidências desse impacto. “Sabemos que a maioria da humanidade tem
religiosidade, tem espiritualidade, e que isso impacta a saúde, melhorando
quadros depressivos ou evitando que aconteçam, diminuindo comportamento
suicida, uso e abuso de substâncias e melhorando qualidade de vida e bem-estar
também”, afirmou o especialista, que é vice-coordenador da Comissão de Estudos
e Pesquisa em Espiritualidade e Saúde Mental da ABP.
Segundo Moreira-Almeida, a recomendação para
profissionais de saúde de forma geral e, em particular, para os psiquiatras,
era que soubessem da importância de tal condição para toda a humanidade, que,
quando as pessoas lidam com problemas de saúde também buscam a espiritualidade
para enfrentá-los e que isso tem impacto positivo.
Na prática, significa que a orientação é que os
especialistas, sem ignorar a medicação, a psicoterapia, busquem conhecer a
história espiritual da pessoa. “Porque nos interessa conhecer o paciente e
perguntar qual é sua religiosidade, sua fé, e quanto isso impacta a sua vida.
E, nesse ponto, identificar os aspectos positivos da religiosidade do paciente
que podem ajudar o psiquiatra, clínico, ou psicólogo, no enfrentamento dos
problemas.”
Achado
O coordenador da Comissão de Estudos e Pesquisa
em Espiritualidade e Saúde Mental da ABP, Bruno Paz Mosqueiro, informou que, em
2019, saiu a revisão de um estudo muito completo sobre a relação entre
depressão e espiritualidade. “Um achado interessante é que, nos momentos de
adversidade, o papel protetor da espiritualidade é muito maior. Isso tem muito
a ver com a covid-19, que foi um momento de adversidade.”
Na Universidade de Harvard, um estudo que
acompanhou quase 90 mil mulheres nos Estados Unidos, mostrou claramente a
importância da religiosidade entre aquelas que frequentam grupos religiosos
semanalmente. Mosqueiro salientou a importância de abordar a R/E com os
pacientes e integrá-la na prática clínica, porque eles querem muito falar sobre
isso.
“E nós, como profissionais, precisamos estar
capacitados para conversar, centrados no paciente e no que ele traz de crença.
Precisamos aprender como trazer isso para a nossa prática clínica, sem precisar
escolher entre o tratamento convencional e religiosidade, mas abordar junto com
outros fatores importantes na vida da pessoa”, explicou.
Tendência
Para Alexander Moreira-Almeida, que também é
professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, esta é uma tendência veio
para ficar, superando visões muito limitadas e parciais do ser humano. Ele
lembrou que, no passado, viveu-se uma época em que se salientavam visões
psíquicas do paciente, a parte psicanalítica ou psicológica. Depois, deu-se
ênfase ao aspecto biológico, de medicações, enquanto outro grupo destacava a
visão de estruturas sociais. Todos os grupos estão parcialmente corretos, por
apontarem aspectos importantes, mas também errados porque querem “generalizar a
partir de uma única ótica”, ressaltou.
O que a WPA e a ABP defendem é uma abordagem
biopsicosocioespiritual, que enxergue todas as dimensões do ser humano. “Na
verdade, eu escolho o meu paciente. E, nesse paciente, vou lidar com o aspecto
biológico, físico, vou saber usar a medicação, a atividade física, o uso de
drogas. No aspecto psíquico, como ele está vendo o mundo, a si mesmo, suas
dificuldades. No aspecto social, o ambiente onde ele convive, buscar situações
mais produtivas. E, por fim, a sua própria espiritualidade, em conjunto com
tudo isso”, explicou o psiquiatra.
Moreira-Almeida informou que foi publicada
recentemente uma revisão de psicoterapias que incluíam a espiritualidade para
tratar problemas psiquiátricos.
Caso faça parte do contexto espiritual do
paciente, uma ideia é incentivar que ele frequente, pelo menos uma vez por
semana, um grupo de sua religião, faça um trabalho voluntário, tenha uma
prática regular diária de oração, meditação e que reflita sobre os problemas do
mundo a partir também de sua perspectiva espiritual. “Vou usar a capacidade de
recuperação e correção de equívocos, arrependimentos pesados que aconteceram no
passado, autoperdão, superação. Tudo isso pode ser usado de modo saudável,
visando à recuperação do paciente. Isso tem crescido cada vez mais nas áreas de
medicina”, disse o psiquiatra.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia publicou
uma diretriz de prevenção cardiovascular com uma seção de espiritualidade.
Alexander Moreira-Almeida destacou que a existência de milhares de estudos
sobre o tema não deixa dúvida de que é um movimento não tem volta.
Na opinião do especialista, isso se aplica
sobretudo no caso da covid-19, cujos efeitos sobre a saúde mental ainda vão se
manifestar por algum tempo. No início do confinamento, uma das respostas mais
frequentes da população sobre o que mais queria voltar a fazer era voltar logo
à sua comunidade religiosa. “A covid lembrou também às pessoas a fragilidade
humana, a falta de controle sobre os acontecimentos. E isso tem muito a ver com
a busca espiritual.”
Embora ainda não haja estudos conclusivos sobre
isso, Moreira-Almeida citou o trabalho de um grupo de pesquisa que investigou
mais de 1.600 pessoas durante a pandemia, para ver como a espiritualidade as
influenciou, levou a reflexões sobre a existência, sobre a vida. Para muitas
pessoas, foi um redescobrir de três coisas: não estou no controle absoluto de
tudo; há necessidade dos vínculos familiares e humanos e da própria
espiritualidade. “Foram três buscas de crescimento com a adversidade.”
Universitários
Bruno Paz Mosqueiro enfatizou que o tema da R/E
tem crescido no meio universitário. Por isso, a comissão se preocupa em trazer
para os congressos da ABP mesas-redondas, cursos e palestras sobre o assunto.
“Queremos trazer isso para o estudo dos profissionais e também para a população
em geral”, afirmou Mosqueiro, lembrando que muitos pacientes ficam satisfeitos
ao conversar sobre isso com os psiquiatras. “Muitos relatam que aumenta a
satisfação no tratamento, e há pesquisas que mostram isso.”
Já Moreira-Almeida destacou que, entre os
estudantes de medicina, existe uma grande abertura para o tema da R/E. Segundo
ele, na maioria das universidades, são os estudantes que puxam o tema com as
ligas acadêmicas de religiosidade e espiritualidade em todo o país. “Tem tido
uma recepção muito positiva”. A comissão da ABP tem parceria com a Liga
Nacional dos estudantes, informou o médico.
Confirmação
O presidente da Associação Brasileira de
Psiquiatria, Antonio Geraldo da Silva, disse à Agência Brasil que estudos
recentes confirmam a relevância da abordagem sobre religiosidade e
espiritualidade no tratamento de transtornos mentais, incluindo publicações e
editoriais em revistas científicas de grande impacto.
“Trata-se de tema de grande prevalência na
população geral. A maior parte dos pacientes demonstra vontade de abordá-lo nos
atendimentos em saúde, e dados consistentes reforçam um fator geral
predominante protetor da R/E dos pacientes para saúde mental, particularmente
nos transtornos depressivos, de humor, transtornos por uso de substâncias e na
prevenção ao suicídio”, indicou Silva.
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