Pesquisa Nacional dos Cuidadores de Pacientes
Raros no Brasil mostra que as mães representam 81% das cuidadoras de pacientes
com doenças raras. Desse percentual, 78% acompanham o paciente 24 horas por dia
e 46% tiveram de pedir demissão do emprego para cuidar do paciente. Outro dado
é que 65% dessas mães dizem não sentir-se plenamente reconhecidas pelo trabalho
como cuidadora.
O estudo foi encomendado pela Casa Hunter, entidade sem fins lucrativos que promove assistência aos portadores de doenças genéticas, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas). Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), doenças raras acometem até 65 pessoas para cada grupo de 100 mil, ou seja: 1,3 a cada 2 mil indivíduos. No Brasil, há 13 milhões de pessoas com doenças raras.
O neuropediatra, Ciro Matsui, médico colaborador do Ambulatório de Doenças Neuromusculares do Hospital das Clínicas e membro do Departamento Científico de Doenças Neuromusculares da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, explica que isoladas as enfermidades são consideradas raras, mas em conjunto chegam a 7 mil doenças.
“O diagnóstico depende de qual a doença em questão. Muitas delas vão acometer crianças, mas algumas tem início na idade adulta. A maioria tem uma origem genética, mas não de maneira obrigatória”. O teste do pezinho, exame feito a partir do sangue coletado do calcanhar do bebê logo após o nascimento, diagnostica apenas seis doenças raras. O exame é oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em todas as maternidades do País.
“As doenças apontadas no teste do pezinho são consideradas doenças raras, mas o teste do pezinho não diagnostica todas as doenças raras, apenas seis hoje. Há lei aprovada para ampliação do número de doenças pesquisadas ”, completa o especialista.
Em 2021, o Governo Federal ampliou para 50 o número de doenças detectadas pelo Teste do Pezinho, por meio da Lei nº 14.154 de 26 de maio de 2021. A estudante Iris Giuliani Oliveira Assis, de 17 anos, é uma paciente com doença rara. Ela foi diagnosticada com com atrofia muscular espinhal (AME), do tipo intermediário, quando tinha 1 ano e 8 meses. “Foi um diagnóstico bem difícil”, conta Aline Giuliane, mãe da Iris.
“A AME é uma doença rara, genética, neuromuscular, altamente incapacitante, é uma doença bastante séria e foi um processo bem complexo quando a gente recebeu o diagnóstico dela. A médica que diagnosticou não nos deu nenhuma esperança. Então foi um processo bastante traumático”, relembra.
Com a demanda de cuidados que a bebê precisava, a mãe Aline, que tinha 24 anos na época, abandonou a carreira para cuidar exclusivamente da filha: “A decisão de parar de trabalhar foi muito difícil, eu tinha acabado de me formar em artes e tinha o sonho de abrir um espaço cultural com duas amigas. Mas me vi numa situação muito complicada, porque, além de a Iris adoecer muito, ela passou por várias internações, então muitas vezes eu saía correndo de lá para poder acudir, então eu não conseguia me dedicar, para mim foi muito difícil porque eu sempre gostei de trabalhar e era muito motivada”.
A responsabilidade dos cuidadores é grande. A pesquisa mostra que 92% acompanham o paciente em consultas, escola e outras atividades externas; 80% alimentam o paciente; 73% realizam a higiene pessoal do paciente; 70% o auxiliam a se vestir; 58% levam ao banheiro e 48% ajudam o paciente a se locomover.
“A maioria das doenças raras são progressivas, degenerativas e multissistêmicas. Por isso, as pessoas que têm doenças raras são afetadas de maneira ampla, o que leva, muitas vezes, à deficiência física ou problemas que impactam diariamente a vida desses pacientes. Assim, o cuidador se torna responsável por essa pessoa quase que integralmente, dependendo da situação e do comprometimento do paciente”, explica Antoine Daher, presidente da Casa Hunter e da Febrararas.
Ou seja, dedicação exclusiva, como relata Aline. “Cuidar da Iris foi uma decisão que eu não tinha muito como optar. Era ou seguir com minha vida ou cuidar da minha filha, então cuidar dela era muito mais importante”.
Presença paterna
A pesquisa também tratou da participação do pai no auxílio dos cuidados de pessoas com doenças raras: 78% das mães afirmam receber ajuda financeira do pai do paciente, 72% vivem com o pai do paciente e 64% das mães afirmam receber apoio emocional do pai do paciente.
O apoio financeiro, no caso da família da Iris, foi do marido e pai da criança.
“O Ricardo [Porva] é atleta profissional de skate. Na época do diagnóstico, ele estava no auge da carreira, viajava muito e era ele quem trazia o maior sustento da casa, então parei de trabalhar, larguei todos os meus sonhos para cuidar da Íris. Ela adoecia muito na época, foi bem difícil quando ela era pequena. Então eu me dediquei exclusivamente aos cuidados com ela”, conta Aline.
Há cerca de cinco anos Aline voltou a trabalhar. Hoje, ela é ativista e fundadora do VivaIris, instituto em Uberlândia (MG) que nasceu com o propósito de ajudar a mudar a vida das crianças portadoras de desordens neurológicas ou motoras, por meio de espaço com terapias integradas e outros projetos de alcance social para famílias com crianças portadoras destas doenças.
“Hoje eu consigo conciliar os cuidados com a minha profissão, porque o pai da Iris hoje está muito presente e ajuda nos cuidados com ela. Quando ela estava com 12 anos, o Ricardo começou a diminuir as viagens e pode ficar mais em casa e atuar mais nos cuidados dela. Ela também já vai fazer 18 anos, está uma adolescente bastante independente no que é possível. Na maior parte do tempo em que ela está na escola ou na terapia, eu consigo trabalhar”.
De acordo com a pesquisa, entre as cuidadoras, 63% perdem ao menos um dia de trabalho no mês em função do cuidado ao paciente; 75% sentem menos disposição para desempenhar seu trabalho; 44% recebem ligações diárias durante o trabalho sobre o paciente; 97% se preocupam com o paciente enquanto estão no trabalho; 73% não tem outra fonte de renda além do trabalho formal; 61% sentem-se insatisfeitas com a qualidade do trabalho que está entregando; 30% recebem algum benefício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Situação financeira
A pesquisa também abordou a situação financeira das cuidadoras: 65% dizem que o dinheiro não é suficiente e 77% afirmam que as despesas da casa aumentaram após o diagnóstico do paciente. Dentre os entrevistados, 47% têm renda familiar de até dois salários mínimo, 42% têm ensino superior completo, 62% não têm emprego formal e 46% pediram demissão para cuidar do paciente.
Aline conta que, atualmente, a situação está estável, mas diz que já passou por muita dificuldade por conta dos altos custos dos tratamentos da filha Iris. “Hoje a gente está numa classe média, não tem dinheiro sobrando, mas também não nos falta nada para manter uma vida com qualidade, mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo passamos muita dificuldade financeira, muita mesmo. Precisamos de auxílio do INSS, que a gente teve muita dificuldade para conseguir, e veio através de uma medida judicial. A Íris demandava muitos cuidados, equipamentos, medicamentos e muita coisa a gente conseguiu via judicial”.
Pesquisa
O presidente da Casa Hunter explica que o objetivo da pesquisa, é levantar dados para auxiliar na construção de políticas públicas voltadas aos cuidadores de pessoas com doenças raras.
“Cientes de que um grande número dos cuidadores abandona suas vidas e os seus empregos para se dedicar apenas aos pacientes, e isso representa também uma perda financeira na família, que, de repente, tem menos renda e mais responsabilidades, precisamos construir políticas públicas que pensem nesses cuidadores que dêem um apoio para essas famílias”, defende Daher.
Autocuidado
Com relação à saúde de cuidadores, a pesquisa mostrou que 60% dizem não ter uma boa noite de sono (sono de qualidade); 68% não realizam atividades de lazer; 74% não realizam qualquer tipo de atividade física; 63% sentem que não tem disposição para concluir as atividades diárias; 82% sentem não ter energia para concluir as atividades que precisam fazer no dia a dia e 79% sentem algum tipo de dor física, assim como Aline. “Recentemente eu tenho feito atividade física, mas isso depois de um processo muito doloroso, emocional e físico, de sentir muitas dores, muito esgotada. Com muito custo e orientação, consegui me organizar para cuidar de mim”.
Com relação à saúde mental, os pesquisados disseram que 48% sentem ter perdido coisas importantes na vida por conta dos cuidados com o paciente; 68% sentem que não há realmente ninguém que entenda o que está passando; 72% sente-se perdidos ou esquecem de si mesmos por conta dos cuidados; 55% sentem que não conseguem realizar todas as tarefas do dia a dia; 58% dizem ter mais coisas para fazer no dia a dia do que poderia e 66% não tem contato social com outras pessoas, além dos familiares que vivem na mesma residência.
“Essa pesquisa mostrou necessidades de se falar mais da saúde mental do cuidador, que é diretamente afetada pelo fato dessa pessoa ficar sete dias por semana cuidando daquele paciente e se colocando em segundo plano. Mas, de fato, o foco principal aqui é com a construção de políticas públicas que venham a beneficiar não só cuidadores, com também toda a família, como apoio financeiro e reconhecimento”, avalia Daher. Segundo o presidente da entidade, a Casa Hunter está em diálogo com parlamentares que se engajaram na construção de políticas públicas para beneficiar esses cuidadores.
Políticas públicas
Dentre as políticas públicas em vigor voltadas às pessoas com doenças raras estão a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, a aprovação das Diretrizes para Atenção Integral no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e a ampliação dos incentivos financeiros para a temática. Entre 2019 e 2021, foram repassados mais de R$ 3,8 bilhões para custeio de tratamentos, segundo informações do Ministério da Saúde.
Ainda de acordo com a pasta, atualmente há mais de 20 estabelecimentos de saúde habilitados como Serviços Especializados e Centros de Referência no país para atendimento de pessoas com doenças raras. Esses pacientes também podem receber atendimento e acompanhamento médico, de acordo com cada caso, nas Unidades Básicas de Saúde ou na Atenção Especializada.
Para o neuropediatra Ciro Matsui, as principais dificuldades são o diagnóstico precoce e o alto custo dos tratamentos. “Algumas doenças raras dispõem de tratamento específico, mas ainda são poucas e com perspectiva de aumento do número de tratamentos. As dificuldades do tratamento são o diagnóstico precoce e os custos de determinados tratamentos. É importante aumentar a conscientização sobre as doenças raras para que mais pessoas possam ser diagnosticadas e tratadas” .
Na opinião da Aline, ainda há muito o que se fazer no país para pacientes e seus responsáveis. “Principalmente pelas pessoas com doenças raras, a gente vive ainda um cenário de muito abandono, muita dificuldade no acesso ao diagnóstico, a tratamento, acolhimento, e aconselhamento genético, que é tão importante. Muita coisa precisa acontecer para gente conseguir ter um verdadeiro cuidado para essas pessoas e para essas famílias. A gente que vive com uma doença rara, com uma deficiência, sabe que a todo momento esbarra em alguma barreira, e a gente segue tentando passar por elas”.
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